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Comportamentos Autolesivos na Adolescência: Conceitos; Prevalência; Avaliação e Intervenção

Atualizado: 14 de fev. de 2022

Conceitos Fundamentais


O tema do suicídio na adolescência tem gerado uma grande preocupação nas entidades públicas oficiais, na comunidade científica, nos educadores e no público em geral. Essa preocupação, embora legítima e fundamentada dá origem, de forma frequente, a algumas distorções e interpretações erróneas que, no limite, vão enraizando a ideia de que a população adolescente é particularmente vulnerável ao suicídio.


Esta ideia deriva muitas vezes da confusão conceptual que existe quando se aborda o tema dos comportamentos auto-destrutivos ou, numa nomenclatura mais contemporânea, dos comportamentos autolesivos. De facto, quando se abordam estes temas num contexto académico, na prática clínica ou em espaços de debate público, verificamos que diferentes conceitos são muitas vezes utilizados de forma indistinta.


Assim, e seguindo as definições apresentadas no Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (2013), é importante ter em conta que em Suicidologia existem conceitos que, apesar de estarem interligados, assumem significados diferentes.


Suicídio consumado - Morte provocada por um acto levado a cabo pelo indivíduo com intenção de pôr termo à vida, incluindo a intencionalidade de natureza psicopatológica;


Tentativa de suicídio - Acto levado a cabo por um indivíduo e que visa a sua morte, mas que, por razões diversas, resulta frustrado;


Ideação suicida - Pensamentos e cognições sobre acabar com a própria vida, que podem ser vistos como precursores de comportamentos autolesivos ou actos suicidas. Podem apresentar-se sob a forma de desejos e/ou plano para cometer suicídio, sem que haja necessariamente passagem ao acto;


Comportamentos autolesivos- Comportamento sem intencionalidade suicida, mas envolvendo actos autolesivos intencionais, como, por exemplo: cortar-se ou saltar de um local relativamente elevado; ingerir fármacos em doses superiores às posologias terapêuticas reconhecidas; ingerir uma droga ilícita ou substância psicoactiva com propósito declaradamente auto-agressivo; ingerir uma substância ou objecto não ingeríveis (lixívia, detergente, lâminas ou pregos).

Dados Epidemiológicos


Embora os dados epidemiológicos internacionais mostrem que existiu um aumento do suicídio na adolescência a partir da segunda metade do século XX e que, actualmente, as mortes por suicídio se situam entre a 2ª e a 5ª causa de morte nesta fase da vida (sendo este dado particularmente significativo nos jovens do sexo masculino entre os 15 e os 24 anos), sabemos também que as taxas de suicídio seguem um padrão ascendente na generalidade dos países, ou seja, tendem a aumentar progressivamente com o aumento da idade. Isto significa que tendencialmente as taxas de suicídio aumentam ao longo do ciclo de vida, atingindo valores mais elevados na fase final da vida.


No nosso país, embora o suicídio continue a ser uma das principais causas de morte entre os jovens com idades entre os 15 e os 24 anos, as taxas de suicídio têm-se mantido estáveis ao longo dos anos. Sabemos também que as intoxicações medicamentosas, em especial por ingestão de psicofármacos, são o método de suicídio mais utilizado pelas raparigas, enquanto que os rapazes usam métodos mais violentos como a precipitação e as armas brancas ou de fogo.


Os dados epidemiológicos são mais preocupantes quando analisamos a incidência das tentativas de suicídio, da ideação suicida e dos comportamentos autolesivos nesta faixa etária, na qual existe de facto uma prevalência bastante significativa.


Alguns estudos realizados com estudantes do ensino secundário de vários países mostram que a incidência de tentativas de suicídio nesta população varia entre 2.2 e 8.3%. Em Portugal, um estudo efectuado com estudantes do ensino secundário (com idades entre os 15 e os 18 anos) revelou uma incidência de tentativas de suicídio na ordem dos 7%. Dos adolescentes que tinham tentado o suicídio, 1.5% apresentava mais do que uma tentativa de suicídio (Oliveira, Amâncio & Sampaio, 2001).


No que diz respeito à ideação suicida, estudos realizados em vários países da Europa mostram que a ideação suicida em estudantes do ensino secundário (fazendo a ressalva para as diferenças conceptuais e empíricas entre os diferentes estudos) varia entre os 2 e os 24.1%. Em Portugal, Oliveira, Amâncio e Sampaio (2001) encontraram algum indicador de ideação suicida em 48.2% de estudantes do ensino secundário.


Este mesmo estudo mostrou que 35% de adolescentes entre os 15 e os 18 anos já teve comportamentos de auto-mutilação. Também Guerreiro (2014), num estudo realizado com alunos de 14 escolas de Lisboa, verificou que 7,3% dos adolescentes (10.5% do sexo feminino e 3,3% do sexo masculino) relatavam comportamentos de auto-agressão. Destes alunos, 46% tinham repetido estes comportamentos. Em relação ao método utilizado, 65% referia os cortes na pele e 18% as sobredosagens de medicamentos.


Ao olharmos para estes dados, e independentemente das questões conceptuais que já referimos, ressalta a importância de termos em conta a prevalência e o significado de uma variedade de comportamentos na população adolescente e jovem adulta que são indicadores de um enorme sofrimento psicológico.


Os dados das investigações nacionais e internacionais dão-nos alguns elementos que permitem identificar um conjunto de factores de risco e de factores protectores que nos ajudam a compreender algumas dimensões destes comportamentos e que são fundamentais para avaliar e intervir em contexto clínico com esta população.

Factores de Risco


- Sexo Masculino (o suicídio mais prevalente nos rapazes e tentativas de suicídio, comportamentos autolesivos e ideação suicida mais prevalente nas raparigas - 5 vezes mais frequentes entre os 12 e os 15 anos);


- Jovens Gays, Lésbicas, Bissexuais (1,5 a 7 vezes mais probabilidade de ter feito uma tentativa de suicídio do que os pares heterossexuais) ou Transgéneros (cerca de 1/3 a 1/2 de jovens em

contexto clínico revelam ter efectuado TS);

- Tentativas de suicídio anteriores;


- Depressão; perturbação bipolar, da ansiedade ou do comportamento; consumo de álcool ou de outras substâncias psicoactivas;


- Traços de personalidade anti-social ou border-line;


- Desesperança; pensamento dicotómico; confusão identitária; baixa auto-estima e auto-confiança; locus de controlo externo; impulsividade; agressividade; e perfeccionismo;


- Dificuldade de integração no grupo de pares e na escola; isolamento; bullying; insucesso ou abandono escolar;

- Abuso físico ou sexual;


- Acontecimentos de vida/factores precipitantes: perdas de amigos ou namorado(a); conflitos familiares; morte de uma pessoa significativa;


- Problemas disciplinares e académicos; envolvimento no sistema de justiça; doença física; actos suicidas em colegas ou amigos;


-Exposição ao suicídio nos media ou na internet;


- Acessibilidade aos meios (a presença de armas de fogo em casa e de outros meios letais (medicamentos) e a supervisão parental inadequada aumentam o risco de suicídio);


Factores Protectores


- Cuidados parentais mantidos, coesão familiar, capacidade de envolvimento mútuo, partilha de interesses e suporte emocional;


- Capacidade de resolução dos problemas;


- Sentido de valor pessoal, abertura a novas experiências e projectos de vida;

- Pertença a um clima escolar positivo;


- Boa relação com amigos, colegas, professores e outros adultos; Suporte dos pares;


- Valores culturais e religiosos.

(Plano Nacional de Prevenção do Suicídio, 2013)


Avaliação e Intervenção


O conhecimento dos factores de risco e dos factores protectores é fundamental para o trabalho clínico, pois permite efectuar uma avaliação da gravidade da situação e do risco de suicídio à medida que se procede à recolha de informações junto dos adolescentes e das suas famílias. A partir destes dados é possível estruturar um plano de intervenção para conter a crise suicidária.


A intervenção em crise assume um carácter muito concreto e pragmático, pois o seu objectivo essencial é travar a eventual intenção suicida e conter o sofrimento mais imediato. Assim, depois de se efectuar uma avaliação do risco e de contextualizar a situação em que ocorreu uma tentativa de suicídio (o mesmo é válido para a presença de ideação suicida ou de um comportamento autolesivo), o foco da intervenção passa por:


- Pensar as vantagens e desvantagens de efectuar ou ter efectuado esse gesto;


- Romper com o Pensamento Dicotómico;


- Focar em Problemas concretos (ruptura afectiva; tomar uma decisão em relação à escola; sanar um problema familiar, etc.);


- Hierarquizar os problemas e tentar criar soluções;


- Identificar a rede de suporte;


- Contrato anti-suicidário;


- Eliminar o acesso a meios letais;


- Ponderar Internamento.

(Maris & Silverman, 2000)

Após a intervenção em crise, e sabendo que todas as situações são diferentes, a generalidade dos adolescentes demonstra disponibilidade para aderir a uma intervenção psicoterapêutica, cujo objectivo central passa por ressignificar e contextualizar o gesto autolesivo no processo de desenvolvimento do adolescente e da sua família.


Os modelos de intervenção que encontramos na literatura sobre este tema são variados, mas abordaremos aqui um modelo desenvolvido há várias décadas pelo Prof. Doutor Daniel Sampaio no Hospital de Santa Maria de Lisboa (Núcleo de Estudos do Suicídio), pois apresenta um quadro conceptual bastante robusto e uma eficácia comprovada do ponto de vista empírico e clínico.


Segundo o modelo deste autor, é muito importante encarar os comportamentos autolesivos na adolescência numa tripla perspectiva: individual (relacionado com o vivido específico do adolescente); familiar (em relação com acontecimentos da sua família, não só no momento destes comportamentos, mas numa visão longitudinal da história e do funcionamento da família); e social (enquadramento social do jovem; emprego/escola, a sua inserção em grupos e a sua participação na sociedade) (Sampaio, 2002).


Assim, ao contactarmos com um adolescente que tenha efectuado uma tentativa de suicídio, que apresente ideação suicida ou comportamentos autolesivos e, após uma intervenção direccionada para a crise suicidária, é importante desenvolver uma psicoterapia centrada nas tarefas de desenvolvimento da adolescência:


- Alteração da relação com os pais (abandono progressivo da dependência parental, autonomização, investimento em relações extrafamiliares);


- Alteração da relação com os pares (questões da socialização e integração num grupo; importância das relações de amizade e das primeiras relações afectivas);


- Identidade (construção progressiva de uma identidade coesa – identidade versus difusão da identidade; multiplicidade de experiências; experimentação de papéis sociais; esboço de um sistema de valores e de crenças).


A par desta abordagem centrada no desenvolvimento do adolescente, este modelo propõe uma visão dos comportamentos autolesivos como uma meta-comunicação sobre o sistema familiar (Sampaio, 2002). Deste modo, é fundamental efectuar um trabalho com a família de modo a:


- Identificar os padrões disfuncionais e geradores de conflito;


- Diminuir a rigidez e aumentar a flexibilidade;


- Atenuar a conflitualidade intrafamiliar;


- Trabalhar a comunicação, diminuindo a ambiguidade e insuficiência das mensagens, os paradoxos e as situações de double-bind;


- Ampliar as redes de sociabilidade da família, quer do ponto de vista do conjunto familiar quer dos seus membros individuais.


Este modelo apresenta assim uma abordagem integrada dos processos individuais, familiares e sociais que estão presentes na adolescência e, para além disso, propõe uma visão sistémica que permite levantar hipóteses explicativas e delinear linhas de intervenção para os comportamentos autolesivos na adolescência. A par destes aspectos clínicos, que permitem uma intervenção eficaz, este modelo integra um conjunto de aspectos conceptuais e empíricos que são fundamentais no trabalho em Suicidologia e que tentámos sistematizar ao longo deste texto.


A integração dos dados que nos chegam da investigação científica com a experiência intuitiva da prática clínica permite construir respostas terapêuticas mais informadas e mais eficazes para os adolescentes e famílias que nos procuram num contexto de enorme dor psicológica. Tal não significa que estas respostas sejam lineares e que não sejam falíveis, pois não é possível escrutinar de forma definitiva a complexidade da experiência humana, as suas contradições e os seus actos de ruptura radical com o viver, mas certamente ajudam a diminuir e a ressignificar o sofrimento, a reinventar a esperança, a transformar a vida.

Referências Bibliográficas


Carvalho, A., Bessa Peixoto, A. Saraiva, C., Sampaio, D., Amaro, F., Santos, J. C., Santos, J., Santos, J. H., Santos, N., Guerreiro. D., Firmino, H., Santos, I., Paulino, M., Xavier, M., Frazão, P., & Gomes, S. (2013). Plano Nacional de Prevenção do Suicídio (2013-2017). Direcção Geral da Saúde, Programa Nacional de Saúde Mental, Portugal.


Guerreiro, D. (2014). Comportamentos Autolesivos em Adolescentes: Características epidemiológicas e análise de factores psicopatológicos, temperamento afectivo e estratégias de coping. Dissertação de Doutoramento. Lisboa: Faculdade de Medicina de Lisboa-Universidade de Lisboa.


Maris, R., Berman, A., & Silverman, M. (2000). Treatment and Prevention of Suicide. In R. Maris, A. Berman & M. Silverman (Eds.). Comprehensive Textbook of Suicidology ( 509-535). New York: Guilford.


Oliveira, A., Amâncio, L., & Sampaio, D. (2001). Arriscar morrer para sobreviver: olhar sobre o suicídio adolescente. Análise Psicológica, 19(4), 509-521.

Sampaio, D. (2002). Ninguém Morre Sozinho: O Adolescente e o Suicídio. Lisboa: Caminho.

Foto: Pedro F./2012


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