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Conjugalidades Gays e Lésbicas: Breves Reflexões para a Terapia de Casal

Tendo em conta os aspectos históricos de repressão, discriminação e invisibilidade que marcaram a vida das pessoas gays e lésbicas ao longo de séculos, não é surpreendente que durante muito tempo a cultura popular não fizesse uma associação clara entre família e gays e lésbicas. De facto, é como se houvesse uma negação de que estas pessoas estão inseridas numa família de origem ou de que vivem em núcleos conjugais e familiares autónomos.


A ausência destas realidades no imaginário simbólico das sociedades contemporâneas foi sendo reforçada não só pelo desconhecimento geral que existe na população acerca das vidas de gays e de lésbicas, mas também pelo pouco desenvolvimento que estes temas tiveram nas principais publicações científicas que se dedicam ao estudo da família ou da terapia familiar. Assim, até aos anos 90 do século passado, o estudo das questões familiares relacionadas com gays e lésbicas teve muito pouca expressão em contextos académicos ou em contextos de formação dirigidos a terapeutas de casal ou terapeutas familiares. Quando estes temas surgiam, eram muitas vezes abordados com um cunho preconceituoso, reflectindo a prevalência de um conceito de família monolítico, heteronormativo e extremamente conservador (Frazão, 2012).


Alguns estudos mostraram que os terapeutas familiares têm falta de informação e de preparação para lidar com temas da vida de gays e de lésbicas, tendo-se verificado que mesmo existindo indicações formais de associações de terapeutas de casal e de família para que estes temas sejam incluídos nos seus currículos de formação, tais temas continuam a ser marginalizados. Este facto leva a que alguns autores acreditem que existe um contexto homofóbico e heterosexista na terapia familiar com uma influência clara sobre as atitudes dos terapeutas face à homossexualidade. No entanto, parece estar a dar-se uma viragem importante, uma vez que começam a aparecer artigos de fundo sobre a população gay e lésbica em revistas bastante prestigiadas de terapia familiar, facto que por si só já é representativo de alguma mudança nas representações sociais sobre estes temas (Clark & Serovitch, 1997; Long & Serovitch, 2003; Malley & Tasker, 1999).


Ao nível do estudo dos contextos familiares de pessoas gays e lésbicas, o interesse dos investigadores tem tido um foco nos temas do coming out (revelação da orientação sexual) e das relações com a família de origem, da conjugalidade gay e lésbica e da homoparentalidade.


Neste texto desenvolveremos especificamente a questão da conjugalidade gay e lésbica, embora esta tenha intersecções frequentes com os outros temas referidos.


Uma das primeiras linhas de estudo sobre casais de gays e lésbicas passou por obter algumas informações sobre as especificidades do funcionamento destes casais e, ao mesmo tempo, efectuar uma comparação com o funcionamento dos casais heterossexuais. Através desta comparação com o modelo dominante da heterossexualidade, os estudos procuravam validar a estabilidade dos arranjos conjugais entre gays e lésbicas (Frazão, 2012).


As investigações realizadas ao longo das últimas décadas mostram, sem qualquer dúvida, que os índices de estabilidade, satisfação relacional e satisfação sexual evidenciados pelos casais de gays e lésbicas são iguais aos dos casais heterossexuais. Sabemos também que os processos que conduzem à dissolução das relações de gays, lésbicas e heterossexuais assentam no mesmo tipo de questões, isto é, na percepção de que existe uma diminuição na qualidade da relação. Contudo, existem diferenças nas dinâmicas dos vários tipos de casais que merecem uma análise mais específica (Gottman et. al, 2003, Kurdek, 2005; Patterson, 2000).


Os dados que emergem da literatura mostram que existem diferenças entre os casais de gays e de lésbicas e os casais heterossexuais sobre a influência dos estereótipos dos papéis de género na relação conjugal. Assim, existem evidências de que os casais do mesmo sexo têm uma estrutura mais paritária, logo com menos problemas e menos conflitos do que os casais heterossexuais no que diz respeito à distribuição das tarefas de gestão financeira, do trabalho doméstico ou do cuidado dos filhos. Tal deve-se ao facto de gays e lésbicas não ficarem presos a guiões culturais que instituem que os homens devem assegurar determinadas funções e as mulheres outras (Spitalnick & McNair, 2005).


De acordo com Spitalnick e McNair (2005), os casais heterossexuais têm um maior acesso a modelos de referência (familiares ou sociais) que os ajudam a enquadrar a sua conjugalidade, enquanto que os casais de gays e lésbicas têm um menor acesso a modelos que validem a construção do seu projecto conjugal. Este último aspecto poderá ser benéfico, uma vez que os gays e as lésbicas não ficam tão presos a uma visão formatada sobre o que é um casal, podendo fazer adaptações sucessivas no sentido de incrementar o bem-estar no interior da relação; mas poderá também acontecer que estes casais interpretem algumas dificuldades típicas da vida conjugal como estando associadas ao factor orientação sexual e não ao factor conjugalidade em si mesmo (Spitalnick & McNair, 2005).


Outra questão que surge em relação às comparações entre conjugalidade gay, lésbica e heterossexual, prende-se com as diferenças ao nível do comportamento sexual. De facto, é mais ou menos consensual que as relações entre homens gays tendem a assumir menos um formato monogâmico e exclusivo do que as relações entre lésbicas ou entre heterossexuais. Poderá existir aqui uma influência do factor género, mais do que do factor orientação sexual, uma vez que alguns estudos mostram que quer as mulheres lésbicas quer as mulheres heterossexuais privilegiam menos os aspectos físicos do parceiro(a) e mostram menos interesse em ter um encontro sexual ocasional do que os homens heterossexuais ou homens gays (Spitalnick & McNair, 2005).


Embora existam homens gays que sempre tiveram e têm uma relação de exclusividade afectiva e sexual com os seus cônjuges, existe uma quantidade bastante significativa de dados que mostram que estes casais apresentam especificidades no modo como conceptualizam e vivem as experiências sexuais fora de uma matriz de conjugal. Tal deve-se à premissa de que a fidelidade é colocada no plano do compromisso emocional e não tanto na exclusividade sexual, sendo que a actividade sexual experienciada fora da relação é vista como algo de meramente recreativo e, portanto, não colocando em risco a estabilidade das relações afectivas. Contudo, podem surgir problemas quando um dos cônjuges tem uma grande actividade sexual fora do contexto da relação e se esse facto levar a uma diminuição das interacções sexuais no contexto do casal. Esta questão é ainda mais relevante se o outro cônjuge se definir como monogâmico (Ossana, 2000, Shernoff, 1999; Shernoff, 2006).


No que diz respeito aos casais de lésbicas, os primeiros estudos sobre o comportamento sexual no contexto destas relações acentuavam a ausência de desejo sexual, as discrepâncias e as dificuldades sexuais entre os cônjuges, mas também o facto de muitas destas relações assumirem um carácter fusional. Este conceito de fusão (o processo através do qual as fronteiras e a distância emocional entre as pessoas fica esbatido ao ponto de se criar uma proximidade emocional extrema) ficaria impregnado no modo como se formulou ou formula o que são as relações afectivas entre um casal de mulheres (Ossana, 2000).


Apesar de alguns estudos mostrarem que as mulheres lésbicas se envolvem em menos actividades sexuais do que as mulheres heterossexuais e homens gays ou heterossexuais, os dados indicam igualmente que a satisfação sexual nas lésbicas é igual ou maior do que nas mulheres heterossexuais. Convém realçar que a maioria destes estudos surgiram entre 1980 e 2000, reflectindo assim aquilo que eram as vivências das lésbicas daquela época, pois a contemporaneidade é marcada por profundas alterações na mentalidade e na vida sexual das mulheres lésbicas (Nichols, 2004).


Tendo em conta as especificidades descritas em relação aos casais de gays e de lésbicas, percebemos melhor as questões que tipicamente surgem no contexto de uma terapia de casal com gays e lésbicas. Assim, e realçando as idiossincrasias de cada casal e de cada pessoa, podemos dizer que os temas da monogamia, da exclusividade sexual e do HIV/SIDA surgem com frequência nos casais de gays; e que a dialéctica intimidade/autonomia é muito prevalente nos casais de lésbicas (Frazão, 2012).


Para além destes aspectos, os desfasamentos no modo como cada membro do casal pretende tornar visível a sua relação, a homofobia internalizada, o medo do assédio e da violência homofóbica, e as questões ligadas à constituição de novos núcleos familiares aparecem transversalmente quer nos casais de gays quer nos casais de lésbicas que procuram terapia (Ossana, 2000; Oswald, 2002; Scrivner & Eldridge, 1995).


Os temas acima descritos, que se enquadram em questões específicas da população gay e lésbica, integram-se numa totalidade de vivências que são transversais à vida de todas as pessoas. Assim, a terapia de casal com gays ou lésbicas é claramente idêntica a uma terapia com um casal heterossexual. Encontram-se os mesmos desencontros, desencantos e zangas e também os mesmos desejos de pertença, vínculo e amor que marcam a complexidade, a riqueza e a profundidade de uma relação conjugal.


Referências Bibliográficas

Clark, W. M., & Serovitch, J. M. (1997). Twenty Years and Still in the Dark? Content Analysis of Articles Pertaining to Gay, Lesbian, and Bisexual Issues in Marriage and Family Therapy Journals. Journal of Marital and Family Therapy, 23, 3, 239-253.


Frazão, P. (2012). No que diz respeito ao amor, andamos todos às escuras. Reflexões em torno da conjugalidade gay e lésbica. In D. Sampaio (Org.), Labirinto de Mágoas: As crises do casamento e como enfrentá-las (pp. 171-217). Lisboa: Caminho.


Gottman, J. M., Levenson, R. W., Gross, J., Frederickson, B. L., McCoy, K., Rosenthal, L., Ruef, A., & Yoshimoto, D. (2003). Correlates of Gay and Lesbian Couples Relationships Satisfaction and Relationship Dissolution. Journal of Homosexuality, 45, 1, 23-43.


Kurdek, L. (2005). What do we know about gay and lesbian couples?. Current Directions in Psychological Science, 14, 5, 251-254.

Long, J. K., & Serovitch, J. M. (2003). Incorporating Sexual Orientation into MFT Training Programs: Infusion and Inclusion. Journal of Marital and Family Therapy, 29, 1, 59-67.


Malley, M., & Tasker, F. (1999). Lesbians, gay men and family therapy: a contradiction in terms?. Journal of Family Therapy, 21, 3-29.


Ossana, S. M. (2000). Relationships and Couples Counseling. In R.M. Perez, K. A. DeBord & K. J. Bieschke (Eds.), Handbook of counselling and psychotherapy with lesbian, gay and bisexual clients (275-302). Washington D. C.: A. P. A.


Oswald, R. M. (2002). Inclusion and Belonging in the Family Rituals of Gay and Lesbian People. Journal of Family Psychology, 16, 4, 428-436.


Nichols, M. (2004). Lesbian sexuality/female sexuality:Rethinking ‘lesbian bed death’. Sexual and Relationship Therapy, 19, 4, 363-371.


Patterson, C. J. (2000). Family Relationships of Lesbian and Gay Men. Journal of Marriage and the Family, 62, 1052-1069.


Scrivner, R., & Eldridge, N. S. (1995). Lesbian and Gay Family Psychology. In R.H. Mikesell, D.D. Lusterman e S. H. McDaniel (Eds.), Integrating Family Therapy: Handbook of Family Psychology and Systems Theory (327-345). Washington D. C.: A.P.A.


Shernoff, M. J. (2006). Negotiated Nonmonogamy and Male Couples. Family Process, 45, 4, 407-418.


Shernoff, M. J. (1999). Monogamy and Gay Men: When are open relationships a therapeutic option? Family Therapy Networker, March/April. Consultado em Outubro de 2006, http://www.gaypsychotherapy.com


Spitalnick, J. S., & McNair, L. D. (2005). Couples Therapy with Gay and Lesbian Clients: An Analysis of Important Clinical Issues. Journal of Sex & Marital Therapy, 31, 43-56.


Nota - Para uma leitura mais aprofundada sobre estes temas, poderá consultar a seguinte referência: Frazão, P. (2012). No que diz respeito ao amor, andamos todos às escuras. Reflexões em torno da conjugalidade gay e lésbica. In D. Sampaio (Org.), Labirinto de Mágoas: As crises do casamento e como enfrentá-las (pp. 171-217). Lisboa: Caminho.


Foto: Pedro F. (2018)



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