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Um passo atrás


Plenitude.


Imagino que presentemente a palavra “plenitude” faça muitos de nós sentirmos um arrepio e uma vontade de recusa e afastamento por aquilo que esta palavra evoca.


Falamos em “plenitude” e surgem ideias mais ou menos abstratas de calma, placitude, mas também, inércia.


Tudo ideias que em tempos foram mais prazerosas do que atualmente…hoje em dia estas expressões aludem aos tempos de confinamento, a vivências de luto pelo nosso quotidiano e rotina, a memórias que ainda nos estão coletivamente marcadas na nossa mente de um mundo parado.


Foi nos dito para pararmos as vidas, foi nos também dito ideias motivacionais e mais-ou-menos inspiradoras que pouco ou nada colmataram o que se estava a passar: uma perda violenta de um dia para o outro da nossa rotina, segurança e previsibilidade no amanhã.


Portanto…”plenitude” talvez não seja o que se procura hoje em dia, muito pelo contrário há um desejo quase desmensurado (e talvez também irrealista) pela recuperação do tempo perdido. Ontem queixava-se a minha filha de que a roupa à venda parecia mais florida e espampanante do que habitualmente. Talvez. Imagino que exista uma procura grande pela expressividade festiva um pouco semelhante aos anos de 1920.

Contudo, como muitos sentimentos, emoções e afetos, quando desenquadrados, em contexto ou intensidade, podem ser prejudiciais, e talvez este frenesim de vida, de “recuperar o tempo perdido”, esteja a induzir sofrimento ao invés de superação do luto pelo que se perdeu.


Claro que há um aspecto funcional desta necessidade: queremos ser mais e melhores, viver a vida de uma maneira que teria estado adormecida, avançar com projetos e desejos parados.


Mas também há, e vejo-o cada vez mais em consulta, o receio de que não é suficiente, a realização de que por muito depressa que se corra não se recupera tempo perdido mas também a incapacidade de abrandar.


Esta insegurança por vezes será nossa, alimentada pelos nossos já pré-existentes compromissos, e por vezes, será reforçada por dinâmicas e relações que existem na nossa vida que têm ganhos por nos dizerem “corre até te partirem as pernas”.

A plenitude não implica parar. Não implica inércia. Implica serenidade. Implica também uma exigência, a exigência de nos sentirmos plenos, cheios o suficiente com nós próprios para olhar a vida e planear o que queremos. Ficar por ali durante um pouco? Afastarmos-mos para ver o quadro completo? Mudar de rumo? Manter o mesmo? Alguém consegue planear uma viagem fazendo da pressa o objetivo final?


A pandemia (e que costas tão largas tem a pandemia) retirou-nos muito, e continua a tirar, contudo, agora parece que retirou a nossa capacidade de abrandar, de exigir tempo para repensar e nos centrarmos nesta azafama do “tempo perdido”. Criámos aversão à plenitude como se no agir-sem-pensar conseguíssemos fugir de algo, como se fossemos um alvo de perigos sem nome se estivermos parados.

Tal qual como não aguentámos durante muito tempo a perda do quotidiano, porque é emocionalmente custoso, também não aguentaremos viver o quotidiano sem dar um passo atrás. Ou dois ou três.

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