top of page

Amor pós-pandemia

Sobre o futuro, pouco ou nada sabemos, mas, uma das poucas certezas que sentimos ter é de que, a nossa realidade após a quarentena será seguramente diferente daquela que conhecíamos até então. Temos ainda a perceção de que isto se estenderá a inúmeros contextos, diríamos até, a quase todos. Os relacionamentos amorosos não são, por isso, exceção.





O ser humano aprende com as suas experiências de vida e, após cada evento vivenciado, não voltará a ser o mesmo que antes. Heráclito de Efeso, filósofo, disse um dia que, “nenhum homem pode banhar-se duas vezes no mesmo rio, pois na segunda vez o rio já não é o mesmo e o homem também não”. Conseguimos assim entender que, ninguém voltará a ser como antes e, isto vai refletir-se de diferentes formas sobre o modo como vivemos as relações e o amor.


Estas alterações já começam a fazer-se sentir e, para alguns casais, o pós-quarentena deixará de fazer sentido ser vivido em conjunto. Por outro lado, alguns casais poderão sair desta fase fortalecidos. Tudo depende do tipo de relação e da dinâmica de funcionamento do casal prévias à quarentena. Numa relação onde já se fizessem sentir atritos, grandes divergências ou distanciamento, é possível que, a maior convivência a que estão sujeitos acabe por agudizar aqueles que já eram problemas da relação. Poderão assim surgir separações e, em casos mais graves, situações de violência.


Passar muito tempo numa convivência permanente vai levar-nos a reparar em caraterísticas a que no dia-a-dia não atribuímos valor e, coisas simples, poderão provocar atritos e discussões. Mais até do que a ansiedade, a irritabilidade é um estado emocional que se faz sentir muito por esta altura de confinamento.


Mas, alguns casais poderão sair fortalecidos de tudo isto. Nos casais onde se verificava uma convivência saudável, esta pode ser encarada como uma ótima oportunidade de fortalecimento da relação, de encontro de momentos para estarem verdadeiramente um com outro, de realização de atividades que, na correria do dia-a-dia não é possível ou de desenvolvimento de longas conversas.


As crises poderão ter o efeito potenciador e fortalecedor de laços. Muitos destes casais sairão, seguramente, mais coesos de tudo isto, com uma visão diferente de si mesmos, do mundo e da própria relação, valorizando e praticando a gratidão por aquilo que de bom existe nas suas vidas. Neste caso, as crises surgem como potenciadores do desenvolvimento humano. Estar tanto tempo com o/a parceiro/a poderá também acrescentar uma visão mais real da vida do outro, do seu contexto, daquilo em que trabalha, podendo isso funcionar como uma redescoberta do casal e do outro.


Todavia, é também um facto que, a alteração da rotina pode levar a alguma desorganização, física e emocional, bem como a alterações na convivência sexual. A incerteza e imprevisibilidade, o não controlo das nossas vidas, o trabalho em casa e os filhos sempre por perto poderão ser fatores inibidores da sexualidade entre o casal. A tendência para o menor cuidado com a aparência e diminuição do autocuidado, poderão também exercer alguma influência na sexualidade, especialmente no desejo sexual. A convivência constante e a pouca novidade poderão desempenhar um papel negativo no desejo sexual, sendo por isso importante encontrar alguma criatividade e tirar partido do tempo que agora tende a ser maior.


Vida mais dificultada terão as pessoas que optaram por viver a quarentena de forma isolada ou cujo relacionamento não implica coabitação. Nestes casos, a vivência do amor e da sexualidade implicará outro tipo de ajustamento ou até, de construção. As tecnologias vêm dar uma ajuda neste sentido e, muitas relações amorosas e até sexuais, têm vindo a ser facilitadas por ela. O sexting, ou partilha de mensagens e conteúdo erótico e sexual através de aplicações no telemóvel é uma realidade em crescimento nos últimos anos, ganhando agora uma nova dimensão pela obrigatoriedade de distanciamento. Sendo esta uma prática em crescimento antes do surto de Covid-19, poderá ganhar nesta fase uma nova dimensão, mantendo-se depois disso como uma prática recorrente.


Quando a tecnologia acrescenta algo de positivo, será sempre bem-vinda e, se tem o caráter de atenuar distâncias e até potenciar as relações, deverá a sua inclusão na dinâmica de casal ser pensada. Contudo, nestas situações, é preciso especial cautela com a proteção dos conteúdos e com a informação que temos sobre a confiabilidade do recetor dos conteúdos, sobretudo em relações que se estão a iniciar neste momento por essa via.


Há sempre espaço para o amor e, é importante que este não seja esquecido no meio do caos que se instalou. O amor dá-nos esperança, dá-nos conforto, dá-nos serenidade e até, alguma previsibilidade quando falamos em relações estáveis e duradouras. Por isso, é importante dedicar-lhe tempo, fomenta-lo e cultiva-lo no agora, já que poderá ser um dos bens mais preciosos no nosso dia-a-dia.


A compreensão, a empatia e a tolerância são palavras de ordem, devendo ser praticadas regularmente na convivência com o outro. As pessoas têm diferentes formas de lidar com as coisas, de encarar o medo e de gerir a ansiedade. Validar o outro nos seus sentimentos, medos e angústias é importante para que o casal se mantenha unido. E esta é uma aprendizagem que deve ser levada para o pós-pandemia. Sabemos que, partilhar um espaço a tempo inteiro pode ser, a determinada altura, perturbador. Contudo, basta encontrar algumas rotinas e alguns momentos reservados a cada um e às suas tarefas individualmente. O casal precisa de se reinventar e, numa fase em que estamos privados de alguma liberdade, os casais precisam de se sentir seguros para amar e investir nas suas relações. Passar mais tempo juntos sempre foi um dos desejos mais comuns dos casais. É altura de tirar partido disso.


O ser humano é um ser social, precisa do outro, precisa de presença, de toque e de abraços. Num momento em que nos privam disso, parece que sentimos ainda mais falta e que nos tiram o chão. Contudo, recordemo-nos que, não é o isolamento que ditará um dano nos relacionamentos, mas sim as suas dinâmicas e as ferramentas que cada casal utiliza para se manter unido. Esta é a altura certa para viver o momento presente com quem amamos, focando naquilo que pode ser controlado.

In Revista Saúde e Bem-Estar, Maio 2020

Por Catarina Lucas - Psicóloga

171 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page