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A doença de amor – ou quando o “amar” é obsessão

Atualizado: 7 de out. de 2021



Um dos meus melhores amigos é constantemente importunado com a pergunta “E então? Há

alguém na tua vida/já conheceste uma rapariga/quando vais assentar/etc?” e derivados intrusivos, bem-intencionados, mas intrusivos.


Pergunta que ele habilmente responde “Apaixono-me sempre que ando de comboio! Hoje vi a rapariga mais linda de sempre. Mas amanhã ando de comboio outra vez por isso não sei”.


Seria apenas uma piada não fosse também um sentimento verdadeiro e tema recorrente em consulta.


Este vai-e-vem de amores, desamores e paixonetas, ambivalentemente intensos, mas muitas vezes sem grande base para existirem, carrega muita angústia para dentro do consultório.

Para grande confusão e sofrimento este amor não escolhe alvo. Pessoas que se encontram em relações dão por si a questionar o porquê destas “paixões” repentinas, tentando dar significado e simbologia à relação em que estão (“Será que estaria a olhar para o lado se estivesse bem na relação onde estou?/Sinto que já não a amo, mas amo, mas se amasse não teria dúvida, mas se não amasse não estaria a sofrer/etc”), e, pessoas solteiras encontram-se perplexas e frustradas com estes amores repentinos e intensos por quase-estranhos.


Em consultório muitas pessoas se questionam e outras colocam as relações atuais em causa. Procuram sinais, confirmatórios ou não, de qual direção a seguir. Irritam-se e iludem-se com a fantasia e idealização que construíram em pessoas que pouco ou nada conhecem.


Afinal que amor é este?

Este “amor” é uma vertente do comportamento obsessivo-compulsivo.


Quando falamos corriqueiramente de comportamento obsessivo-compulsivo, “amor” não é exatamente a palavra em que pensamos…pensamos em lavar as mãos com muita frequência, verificar se o gás ficou bem fechado apesar de já o termos verificado antes, etc. Não pensamos em amor.


Contudo, é uma das vertentes deste quadro mais presentes em consultório.


Estudado pelos psicólogos Duyen B. Vo e Albert Wakin este estado emocional e comportamental começa a ser mais compreendido, principalmente porque numa primeira instância assemelha-se a amor normativo e, portanto, é difícil de identificar. Embora pareça amor “normal”, é um estado emocional negativo, prejudicial e impactante na saúde mental que envolve pensamentos intrusivos, obsessivos e compulsivos, assim como comportamentos condicionados pela reciprocidade emocional interpretada da pessoa de interesse.


Numa relação de amor, ou afeto, normativa, frequentemente passamos pelo período de “lua-de-mel”, com sentimentos e reações intensas à outra pessoa que tendem a acalmar com o tempo, o que permite o desenvolvimento de uma relação mais estável, íntima e de confiança.

Nesta vertente do comportamento obsessivo-compulsivo, estes sentimentos e reações iniciais não só se mantêm como se intensificam, tornando-se disruptivas e impactando a capacidade de controlo sobre os pensamentos, emoções e comportamentos.


São identificadas, neste quadro 3 fases distintas:


  • Força inicial ou de pulsão do comportamento – Surge o desejo intenso de reciprocidade emocional.

  • Forças de manutenção do comportamento – Pensamentos intrusivos e obsessivos; constantes fantasias e construção de cenários imaginados; hipersensibilidade a pistas comportamentais e tendência a sobrevalorizar e analisar comportamentos da outra pessoa; medo de rejeição.

  • Forças resultantes do comportamento – Instabilidade e labilidade emocional com flutuações entre intensa alegria e melancólica depressão; ansiedade e culpa.


Mas como pode o comportamento obsessivo-compulsivo resultar neste quadro? É preciso entender que este mecanismo é alimentado pela incerteza.


Inicialmente há um desejo por reciprocidade emocional da outra pessoa, e este desejo irá toldar e enviesar toda a capacidade de perceção das ações e palavras por parte da outra pessoa, em suma, fazendo com que se veja e ouça o que se quer ver e ouvir.

Há então um desfasamento entre a realidade e a perceção fantasiada, o que gera a incerteza…e como quem está comigo em sessão já me ouve dizer (muitas vezes), a ansiedade é uma emoção que vive no futuro, no futuro incerto e consequentemente ameaçador.


Portanto este quadro ativa mecanismos de controlo de ansiedade, nomeadamente mecanismos obsessivo-compulsivos com hipervigilância sobre as interações com a outra pessoa, enviesamento na interpretação de ações e emoções, ruminação e repetição de cenários, etc, tudo com o objetivo de eliminar a incerteza face à reciprocidade do “amor” por parte da outra pessoa. Como esta incerteza não termina, porque o “amor” é factualmente platónico e sem reciprocidade, a ansiedade aumenta, aumentando os mesmos mecanismos que a tentam controlar, num ciclo que se alimenta a si mesmo.


Alguns psicólogos atribuem este fenómeno a uma subjacente incapacidade de se amar-a-si-mesmo, como uma projeção do amor que se é incapaz ou difícil de dar a si, e que seja mais fácil de viver o amor por analogia numa pessoa externa perfeita e idealizada. Aqui reside uma das ferramentas terapêuticas usadas: retirando o foco ao “outro”, restituindo o amor no próprio. Numa outra vertente, a terapia irá focar-se no confronto com o real, já que este “amor” reside não na pessoa alvo, mas na fantasia idealizada daquilo que esta tem para oferecer (ou que falta).


No fundo, aquilo que parece um problema relacional do eu-com-o-outro, é um sintoma do problema relacional com o próprio.


Para alguém que escreve maioritariamente sobre o amor e a relação este texto parece um pouco cínico. Existe então essa tal paixão espontânea? É possível distinguir o normativo do comportamento dependente do outro, ou obsessivo face ao outro? Sim e sim.

Mas para nos permitirmos à paixão normativa, para conseguirmos identificar o preenchimento que a relação saudável com o outro nos traz continuamos a precisar do que em consultório se aborda: amor próprio e auto-conhecimento.


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